06 abril, 2010

Bento XVI responde: Como viver a afetividade segundo a Palavra de Deus?


2. Santo Padre, chamo-me Anna, tenho 19 anos, estudo Letras e pertenço à Paróquia de Santa Maria do Carmelo.
Um dos problemas com os quais me deparo com mais frequência é o afectivo. Em maior medida temos dificuldade em amar. Sim, dificuldade: porque é fácil confundir o amor com o egoísmo, sobretudo hoje, quando grande parte da mídia quase nos impõe uma visão da sexualidade individualista, secularizada, onde tudo parece ser lícito, e tudo é concedido em nome da liberdade e da consciência dos indivíduos. A família fundada no matrimónio parece ser apenas uma invenção da Igreja, para não falar, depois, das relações pré-matrimoniais, cuja proibição é considerada, até por muitos de nós, crentes, incompreensível ou fora do tempo... Sabendo bem que muitos de nós procuramos viver responsavelmente a nossa vida afectiva, pode ilustrar-nos o que nos quer dizer em relação a isto a Palavra de Deus? Obrigada. 

Trata-se de uma grande questão e responder em poucos minutos certamente não é possível, mas procuro dizer alguma coisa. A própria Anna já deu algumas respostas quando disse que hoje o amor é com frequência mal interpretado, porque é apresentado como uma experiência egoísta, enquanto que na realidade é um abandono de si e assim torna-se um encontrar-se. Ela disse também que uma cultura consumista falsifica a nossa vida com um relativismo que parece conceder-nos tudo e na realidade nos esvazia. Mas ouçamos então o que diz a Palavra de Deus em relação a isto. Anna queria saber exactamente o que diz a Palavra de Deus. É para mim muito agradável ver que já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, logo após a narração da Criação do homem, encontramos a definição do amor e do matrimónio. O autor sagrado diz: "O homem deixará seu pai e sua mãe, unir-se-á à sua mulher e os dois serão uma só carne, uma única existência". Estamos no início e já nos é dada uma profecia do que é o matrimónio; e esta definição também permanece idêntica no Novo Testamento. O matrimónio é este seguir o outro no amor e, desta forma, tornar-se uma única existência, uma só carne, e por isso, inseparáveis; uma nova existência que nasce desta comunhão de amor, que une e cria um futuro. Os teólogos medievais, interpretando esta afirmação que se encontra no início da Sagrada Escritura, disseram que dos sete Sacramentos, o matrimónio foi o primeiro que Deus instituiu, porque foi instituído já no momento da criação, no Paraíso, no início da história, e antes de qualquer história humana. É um sacramento do Criador do universo, inscrito precisamente no próprio ser humano, que está orientado para este caminho, no qual o homem abandona os pais e se une à sua mulher para formar uma só carne, para que, desta forma, se tornem uma única existência. Por conseguinte, o sacramento do matrimónio não é invenção da Igreja, é realmente "con-criado" com o homem como tal, como fruto do dinamismo do amor, no qual o homem e a mulher se encontram reciprocamente e assim encontram também o Criador que os chamou ao amor. É verdade que o homem caiu e foi expulso do Paraíso, ou por outras palavras mais modernas, é verdade que todas as culturas estão poluídas pelo pecado, pelos erros do homem na sua história e assim o desígnio inicial inscrito na nossa natureza está obscurecido. De facto, nas culturas humanas encontramos este obscurecimento do desígnio original de Deus. Mas, ao mesmo tempo, observamos as culturas, toda a história cultural da humanidade, verificamos também que o homem nunca pôde esquecer totalmente este desígnio que existe na profundidade do seu ser. Sempre soube, num certo sentido, que as outras formas de relação entre homem e mulher não correspondiam realmente ao desígnio original do seu ser. E assim nas culturas, sobretudo nas grandes culturas, vemos sempre de novo como elas se orientam para esta realidade, a monogamia, ser o homem e a mulher uma só carne. É assim, na fidelidade, que uma nova geração pode crescer, que se pode dar continuidade a uma tradição cultural, renovando-se e realizando, na continuidade, um progresso autêntico.
O Senhor, que falou disto na língua dos profetas de Israel, mencionando a concessão da parte de Moisés do divórcio, disse: Moisés vo-lo concedeu "devido à dureza do vosso coração". O coração depois do pecado tornou-se "duro", mas não era este o desígnio do Criador e os Profetas com clareza crescente insistiram sobre este desígnio originário. Para renovar o homem, o Senhor aludindo a estas vozes proféticas que sempre guiaram Israel para a clareza da monogamia reconheceu com Ezequiel que temos necessidade, para viver esta vocação, de um coração novo; em vez de um coração de pedra como diz Ezequiel precisamos de um coração de carne, de um coração verdadeiramente humano. E o Senhor no Baptismo, mediante a fé "implanta" em nós este coração novo. Não é um transplante físico, mas talvez nos possamos servir precisamente desta comparação: depois do transplante, é necessário que o organismo seja cuidado, que receba os remédios necessários para poder viver com o coração novo, de forma a tornar-se o "seu coração" e não o "coração de outrém". Muito mais neste "transplante espiritual", onde o Senhor nos implanta um coração novo, um coração aberto ao Criador, à vocação de Deus, para poder viver com este coração novo, são necessários cuidados adequados, é preciso recorrer aos remédios oportunos, para que ele se torne verdadeiramente "o nosso coração". Vivendo na comunhão com Cristo, com a sua Igreja, o novo coração torna-se realmente "o nosso coração" e torna-se possível o matrimónio. O amor exclusivo entre um homem e uma mulher, a vida a dois designada pelo Criador torna-se possível, mesmo se o clima do nosso mundo lhe apresenta tantas dificuldades, até fazê-la parecer impossível.
O Senhor dá-nos um coração novo e nós devemos viver com este coração novo, usando as terapias oportunas para que seja realmente "nosso". É assim que vivemos tudo o que o Criador nos deu e isto cria uma vida verdadeiramente feliz. De facto, também podemos ver isto neste mundo, apesar de tantos outros modelos de vida: existem tantas famílias cristãs que vivem com fidelidade e com alegria a vida e o amor indicados pelo Criador e assim cresce uma nova humanidade.
E por fim acrescentaria: todos sabemos que para alcançar uma meta no desporto e na profissão são necessárias disciplina e renúncias, mas depois elas são coroadas pelo sucesso, por ter alcançado a meta desejada. Também a própria vida, isto é, o tornar-se homens segundo o desígnio de Jesus, exige renúncias; mas elas não são uma coisa negativa, ao contrário ajudam a viver como homens com um coração novo, a viver uma vida verdadeiramente humana e feliz. Dado que existe uma cultura consumista que pretende impedir que vivamos segundo o desígnio do Criador, nós devemos ter a coragem de criar ilhas, oásis, e depois grandes terrenos de cultura católica, nos quais viver o desígnio do Criador.
Quinta-feira, 6 de Abril 2006

Nenhum comentário:

Postar um comentário